Ao longo dos últimos 30 anos, a conscientização e a triagem clínica de tumores malignos levaram a uma ênfase no diagnóstico precoce do câncer. Embora os objetivos desses esforços sejam reduzir as taxas de mortalidade por câncer e os diagnósticos da doença em estágio avançado, tendências seculares e ensaios clínicos sugerem que essas metas não foram cumpridas. Os dados disponíveis nos Estados Unidos demonstram aumentos significativos de diagnósticos em fase precoce da doença, sem uma diminuição proporcional dos casos da doença em estágio avançado.
O que emergiu foi uma apreciação da complexidade da condição patológica chamada câncer. A palavra “câncer”, muitas vezes, invoca o espectro de um processo inexoravelmente letal, no entanto, os cânceres são heterogêneos e podem seguir vários caminhos, nem todos eles evoluem para metástases e mortes. Eles também incluem a doença indolente, que não causa nenhum dano durante a vida do paciente. Uma melhor biologia do tumor pode significar, por si só, um resultado melhor. Embora essa complexidade dificulte o objetivo do diagnóstico precoce, o seu reconhecimento é uma oportunidade para adaptar o rastreamento do câncer com foco na identificação e no tratamento dessas condições, provavelmente mais associadas à morbidade e à mortalidade.
Mudanças na incidência do câncer e da mortalidade por câncer revelam três padrões que surgiram após o início das triagens. As triagens para o câncer de mama e para o câncer de próstata parecem detectar mais cânceres que são potencialmente, clinicamente falando, insignificantes. O câncer de pulmão pode seguir este padrão se o rastreamento de alto risco for adotado para este tumor. O esôfago de Barrett e o carcinoma ductal da mama são exemplos para os quais a detecção e a remoção de lesões consideradas pré-cancerosas não levaram à menor incidência de câncer invasivo. Em contraste, o câncer cervical e o câncer de cólon são exemplos de programas de triagem eficazes em que a detecção precoce e a remoção de lesões pré-cancerosas reduziram a incidência da doença na sua fase inicial, bem como em sua fase final. Os tumores malignos da tireoide e o melanoma são exemplos de triagens que têm se expandido e, junto com elas, o aumento da detecção da doença indolente.
A frequência ideal de triagem depende da taxa de crescimento do câncer. Se o câncer é de rápido crescimento, a triagem raramente é eficaz. Se o câncer é de crescimento lento, mas progressivo, com uma longa latência e uma lesão pré-cancerosa (por exemplo, pólipos ou neoplasia intraepitelial cervical), a triagem é ideal e pode ser eficaz. No caso de um tumor indolente, a detecção é potencialmente prejudicial, pois pode resultar em excesso de tratamento. Estas observações fornecem uma oportunidade para reorientar a triagem em busca da redução da morbidade e da mortalidade da doença e reduzir a carga excessiva de triagem e tratamentos de câncer.
Em março de 2012, o Instituto Nacional do Câncer, dos Estados Unidos, convocou uma reunião para avaliar o problema de “excesso de diagnóstico” ou “overdiagnosis”, que ocorre quando os tumores detectados, se deixados quietos, não iriam se tornar clinicamente aparentes ou causar mortes. O “overdiagnosis”, se não for reconhecido, geralmente leva ao “overtreatment” ou “excesso de tratamento”. Este ponto de vista resume as recomendações de um grupo de especialistas formado para desenvolver uma estratégia para melhorar a abordagem atual para o rastreamento e a prevenção do câncer.
Programas de rastreamentos periódicos têm o potencial para identificar um reservatório de tumores indolentes. No entanto, o câncer ainda é considerado um diagnóstico com consequências fatais se não tratado.
Uma intervenção de triagem ideal é aquela focada na detecção da doença que acabará causando algum dano ao paciente ou que é mais provável de ser curada se detectada precocemente e naqueles tumores para os quais os tratamentos curativos são mais eficazes se a doença é diagnosticada em estágio inicial. Indo além, a habilidade de criar melhores programas de rastreamento dependerá da capacidade de melhor caracterizar a biologia da doença detectada, de usar a dinâmica da doença (o comportamento ao longo do tempo) e os diagnósticos moleculares que determinam se o câncer será agressivo ou indolente para evitar o “overtreatment”. A compreensão da biologia dos tumores malignos é necessária para aperfeiçoar os programas de detecção precoce e os tratamentos adequados para cada tipo de tumor.
As seguintes recomendações foram feitas pelo National Cancer Institute para análise e divulgação:
- Médicos, pacientes e o público em geral devem reconhecer que o “overdiagnosis” é comum e ocorre com mais frequência com o rastreamento para o câncer. A identificação do câncer indolente é comum no câncer da mama, do pulmão, da próstata e da tireoide. Sempre que o rastreamento é utilizado, a fração de tumores nesta categoria aumenta. Ao reconhecer essa consequência da triagem, as abordagens que reduzem o problema podem ser testadas.
- Mudar a terminologia do câncer. O uso do termo “câncer” deve ser reservado para descrever lesões com uma probabilidade razoável de progressão letal se deixadas sem tratamento. Há duas possibilidades de mudança. Primeiro, as condições pré-malignas (por exemplo, carcinoma ductal in situ e neoplasia intraepitelial prostática) não devem ser rotuladas como câncer ou neoplasia, nem a palavra “câncer” deve estar no nome. Em segundo lugar, ferramentas de diagnóstico molecular que identificam lesões indolentes ou de baixo risco devem ser adotadas e validadas. Outro passo é reclassificar esses tipos de câncer como IDLE, ou seja, “lesões indolentes de origem epitelial” (IDLE = “indolent lesions of epithelial origin”).
- Criar registros de observação para possíveis lesões malignas de baixo grau. Fornecer aos pacientes e aos médicos o diagnóstico patológico e as informações relacionadas ao prognóstico da doença é crucial para a decisão, incluindo o conforto com as estratégias de tratamento alternativo, tais como vigilância ativa e decisão informada. O prognóstico para as lesões pré-cancerosas inclui o risco de desenvolvimento de câncer invasivo, o período durante o qual tal tumor iria se desenvolver e o prognóstico para este tipo de tumor. O prognóstico para o câncer invasivo inclui o risco e o tempo de desenvolvimento de doença metastática e de morte. Grandes registros de condições potencialmente indolentes iriam fornecer os dados que ligam à dinâmica da doença (por exemplo, a taxa de crescimento do tumor ao longo do tempo) e diagnósticos necessários para oferecer aos pacientes e aos médicos a confiança para selecionar as intervenções menos invasivas.
- Reduzir o “overdiagnosis”. Estratégias para reduzir a detecção da doença indolente incluem a adequada redução das avaliações diagnósticas, a redução da frequência de exames de rastreamento, concentrando-se a triagem em populações de alto risco, elevando os limiares para recall e biópsia, e testando a segurança e a eficácia de abordagens de triagem baseadas no risco para melhorar a seleção de pacientes para a triagem do câncer. O objetivo final é detectar o câncer que terá consequências, evitando a detecção da doença inconsequente.
- Expandir o conceito de como abordar a progressão do câncer. Investigações futuras devem incluir controle dos ambientes em que as condições pré-cancerosas e cancerosas surgem, como uma alternativa para a excisão cirúrgica.
As conclusões do grupo de especialistas do National Cancer Institute são:
A intenção original da triagem é detectar o câncer em estágios iniciais para melhorar os resultados de diagnóstico e tratamento, no entanto, a detecção de tumores com uma biologia mais favorável contribui para melhores resultados. As triagens resultam na identificação de uma doença mais indolente. Embora nenhum médico tenha a intenção de “tratar com excessos” ou “superdiagnosticar” o câncer, as triagens e a conscientização dos pacientes têm aumentado a chance de identificar um espectro de tipos de câncer, alguns dos quais não são fatais. Políticas que impedem ou reduzem a chance de excesso de diagnósticos e evitem o “overtreatment” são necessárias, mantendo os benefícios da detecção precoce que é um dos principais contribuintes para a diminuição da mortalidade e para evitar que a doença cause metástases. As recomendações deste grupo de especialistas servem como abordagens iniciais. Médicos e pacientes devem se envolver em uma discussão aberta sobre estas questões complexas. Os meios de comunicação devem compreender e comunicar a mensagem, para que haja maior envolvimento da sociedade na melhoria da abordagem do rastreamento do câncer.
Fonte: The Journal of the American Medical Association